Introdução
O objetivo deste artigo é proporcionar três ferramentas para que um leitor leigo consiga realizar o desafio lançado por Deus de observar as Escrituras. As ferramentas são: leitura, interpretação e aplicação. A tarefa de leitura do texto bíblico, por mais incrível que pareça, tem sido cada vez deixada de lado em muitos projetos de interpretação.
Fala-se muito ou lê-se muito acerca do texto sagrado, mas dificilmente encontramos projetos que efetivamente incentivam e auxiliam na leitura do texto bíblico. Falando de interpretação, não seria um exagero dizer que tudo o que a mente humana lê ou vê é submetido a algum tipo de interpretação. Ela as vezes são conscientes e inconscientes, como na leitura de um aviso indicado “desembarque” no aeroporto; em outros casos específicos, como na leitura de um texto bíblico, a tarefa de ler e interpretar requer disciplina e estratégias que não acontecem inconscientemente, mas são habilidades que precisam ser desenvolvidas. Diante destes fatos, iremos ajudá-lo com ferramentas interpretativas para um melhor aproveitamento na leitura e estudo bíblico.
A Importância de Ler antes de Interpretar
Estudar a Bíblia nunca foi uma tarefa fácil. Enganam-se os que pensam que os cristãos do AT e NT liam os textos bíblicos e entendiam perfeitamente o seu sentido, aplicação e relevância para o seu contexto. Há vários exemplos que poderiam ser apresentados para defender esta posição, mas apenas um será suficiente, o caso do profeta Daniel.
Deus se revela aos seus profetas por meio de visões e sonhos. Mais especificamente, os profetas podiam ter inúmeras visões em um único sonho, conforme lemos em Daniel 7.1: “… Daniel teve um sonho e visões enquanto estava deitado em sua cama…”. Mesmo sendo um profeta, Daniel não entendeu exatamente o sentido daquelas visões que ele estava recebendo.
Porém, isso não significa que a linguagem utilizada por Deus era cheia de problemáticas, enigmas e mistérios que somente uma pessoa altamente qualificada poderia entender. Sabe por que? Porque Daniel era essa pessoa, alguém com sabedoria acima da média dos seus contemporâneos.
Mesmo assim, a Palavra de Deus dirigida a ele por meio dos sonhos e visões não eram perfeita ou imediatamente compreensíveis. Se isso aconteceu com o profeta Daniel, por que não seria para nós leitores contemporâneos da Bíblia?
A finalidade deste estudo visa alcançar essa compreensão que não acontece automática e de modo fácil, mas requer um esforço e estratégias que auxiliem nessa direção. Uma das expectativas com respeito a este estudo é que ao estudar a Bíblia de modo indutivo possa despertar o interesse nos leitores da Bíblia por um significado mais relevante para suas vidas.
Cinco Perguntas Interpretativas
O primeiro passo no início de uma interpretação bíblica é identificar a presença de detalhes importantes no texto por meio das chamadas perguntas interpretativas (perguntas chaves). Nem todos estudantes da Bíblia concordam com o uso de perguntas para induzir o leitor a observar somente alguns aspectos no texto, mas a prática tem mostrado que as inúmeras perguntas, dúvidas, interesses e curiosidades trazidos pelo leitor acabam pulverizando a mensagem central do texto, tornando-a em alguns casos quase imperceptível.
Estas ferramentas nos ajudarão na visão panorâmica do texto que é, de certa forma, o “cardápio” de todas as possibilidades e peculiaridades do texto. Antes de iniciar uma interpretação é sempre bom saber quais são as principais questões tratadas no contexto mais amplo para que, em seguida, seja possível identificar os detalhes das partes menores. Isto impede que tenhamos um interesse desproporcional em apenas um aspecto da narrativa em questão.
QUEM? Identificando os Personagens
– Narrador:
- Apresenta a História;
- Tem a última palavra;
- Está fora da cena.
– Personagem:
- Encena a história;
- Opinião provisória;
- Está dentro da cena.
– Assunto:
- Não deve ser tratado nesta categoria, mas sim como “o quê”.
A primeira tarefa no trabalho de leitura e interpretação de um texto bíblico é descobrir a identidade e tipo de pessoas falando no texto. Há pelo menos dois tipos de pessoas que nos interessam inicialmente. Primeiramente, temos aquele que narra os acontecimentos (o narrador), e o segundo, o que participa da narrativa como um agente que está praticando, praticou ou praticará uma ação (o personagem).
O narrador apresenta os personagens sempre na terceira pessoa do singular além de emitir opiniões conclusivas sobre o que está ocorrendo na cena. O narrador na maioria das narrativas bíblicas parece ser onisciente, pois é capaz de ver ações que foram realizadas em segredo, de ouvir conversas que aconteceram a portas fechadas, parece estar bem familiarizado com as cogitações mais íntimas do personagem, sendo capaz de descrevê-las a nós. No caso dos textos bíblicos, esta onisciência do narrador se deve ao fato de ele ser inspirado. Logo, o narrador sempre terá a palavra final acerca dos eventos e dificuldades apresentados na narrativa.
O segundo tipo, os personagens, são aqueles que encenam a história participando efetivamente da cena em questão. Quando um personagem é apenas mencionado pelo narrador, não permitindo que ele ou ela participem nos diálogos, estamos diante do terceiro tipo de pessoa: o personagem assunto. A identificação do personagem não é apenas dar nomes às pessoas que aparecem e atuam na narrativa, mas descobrir o nível de interferência que eles têm no desenvolvimento da história.
A resposta dessa primeira pergunta interpretativa será, em grande parte, um substantivo comum ou próprio. O personagem é geralmente uma pessoa e raramente um objeto ou um local. Uma regra geral: sempre que o pronome pessoal aparece, é indispensável que a interpretação identifique quem é o personagem em questão. Se em algum momento, ocorre palavras do discurso de alguém sem a sua identificação inicial, o contexto imediato anterior ou posterior, o contexto todo, irá nos informar que é o personagem e o responsável pelas palavras ditas no trecho lido.
Em alguns casos o personagem é o narrador, que apresenta o discurso de algum personagem, por exemplo: “Tendo o Senhor falado…” ou “O Senhor disse…”. Outro caso seria do narrador o responsável pelo discurso, mencionando algumas pessoas, elas são consideradas apenas como o assunto e não como personagem.
Já o pronome pessoal na primeira pessoa do plural – NÓS, gera um desafio maior ao leitor, pois levanta perguntas como: quantas e quais são as pessoas apontadas pelo pronome pessoal no plural? A resposta está em ler o contexto anterior e posterior para descobrir as personagens do texto.
Concluímos que a identificação do “QUEM” é um passo inicial e fundamental para a tarefa de interpretação. Resolver o “QUEM” está falando é o primeiro passo para uma boa leitura interpretativa, pois evita de atribuirmos expectativas alheias ao personagem em questão.
O QUÊ? Identificando o Assunto
A segunda tarefa no trabalho de leitura interpretativa das Escrituras visa a identificar o assunto, isto é, o que está acontecendo, aconteceu ou acontecerá na narrativa. A identificação do assunto estará relacionada a um verbo ou uma ação verbal: alguém realizou alguma coisa ou sofreu a ação de algo que foi feito.
O que realmente está acontecendo nesta cena?
– Passo 1: Alguma coisa foi feita, dita ou pensada por alguém ou para alguém
– Passo 2: Quem? Personagens presentes na cena
– Passo 3: O quê? Personagens + Elementos do cenário
– Possibilidades: Imagina a figura de uma mãe com o seu filho e ao lado uma árvore. As possibilidades de uma figura como essa comunicar são inúmeras, mas vamos nos deter em apenas três: (a) Uma mãe está passeando com o filho no parque; (b) Um policial encontrou uma criança perdida no parque; (c) Disse a mãe: “Filho, esta árvore foi plantada no dia em que eu nasci”.
Inicialmente, é sempre bom identificar os verbos nas orações principais, pois eles nos dão uma ótima indicação do que o texto está tratando. Mas, nos textos poéticos é comum o leitor perder de vista o assunto que está sendo dito por conta do inúmeras figuras e paralelismos utilizados. Uma boa dica para descobrir o assunto é iniciar o trabalho redigindo um paralelismo entre os verbos utilizados naquele trecho e os personagens.
Uma regra de ouro para a leitura e a interpretação de um texto é a identificação de verbos no imperativo ou verbos que constroem uma pergunta. O verbo no imperativo indica que uma ordem foi dada (ou um desejo foi expresso) e o valor e urgência desta ordem serão determinados pelo “quem” respondeu por ela. Algumas atitudes que podem surgir diante da ordem: (a) ignorar; (b) demorar para responder; (c) responder imediatamente; (d) questionar a autoridade daquele que deu a ordem.
No caso dos verbos que estão ligados a perguntas, a atenção é a mesma, ou seja, o “quem” relacionado com as perguntas é fundamental para indicar quais perguntas merecem nossa atenção. As perguntas são conectores valiosos que nos sinalizam a relação entre as partes de uma narrativa.
POR QUÊ? Identificando o Motivo
A terceira tarefa no trabalho de leitura interpretativa das Escrituras visa a identificar o motivo por que os personagens disseram ou fizeram alguma coisa. Esta é a tarefa mais árdua de toda a interpretação. Isso se dá pelo fato de ser o conjunto das duas primeiras perguntas, e a dificuldade de identificar as primeiras perguntas comprometerão a identificação desta terceira pergunta interpretativa.
Para aumentar o nível de dificuldade, nem todos os textos estão interessados em justificar o motivo por detrás das ações realizadas, e quando existe esta possibilidade de verificar os motivos, precisamos respeitar a intenção original do autor e não investir tempo tentando encontrar outras razões.
A identificação desta terceira tarefa interpretativa deve ser orientada pela ação principal realizada pelo personagem e não por ações secundárias. Assim, investigar o motivo das ações é sempre uma tarefa complexa; ele envolve boa percepção dos fatos e o modo como eles são apresentados.
Há um risco a que precisamos estar atentos, o de usar uma explicação oferecida pelo texto (porque, pois, já que, etc) para justificar mais do que o autor planejou explicar, ou seja, cada uma destas partículas explicativas possui uma abrangência limitada e definida, que iremos classificar como micro ou macro.
Porque MACRO – Abrangência ilimitada dentro do livro, nível conclusivo definitivo e superior a porque MICRO.
Pois MICRO – Abrangência limitada, nível conclusivo inferior ao por que MACRO.
Mas como saber se realmente o texto não está interessado em oferecer os motivos? Algumas dicas importantes:
(1). A ausência de partículas porque, pois, por isso, etc., não é uma conclusão para afirmar que o texto não busca explicar os motivos. Há casos quando o autor não usa estas partículas, mas apresenta a razão ou razões para o que foi dito ou feito.
(2). O motivo MACRO sempre ocorre numa frequência bem menor e é mais comum aparecer no início ou final de um livro.
(3). O motivo MACRO geralmente é dito pelo narrado.
(4). O motivo MICRO é geralmente dito por um dos personagens na narrativa e sua abrangência limita-se em um parágrafo.
(5). Quando o autor utiliza o PORQUE, o motivo sempre vem depois; quando ele utiliza POR ISSO, o motivo geralmente aparece antes.
(6) O que determina a razão apresentada em um texto se foi satisfatória ou não, não está na expectativa criada pelo leitor e sim na intenção original do autor do texto. Nossa grande dificuldade está em identificar se o MOTIVO tem a ver com o leitor e não com o texto, pois muitas vezes criamos expectativas que vão além daquilo que o texto foi originalmente escrito para responder.
QUANDO? Identificando o Tempo ou Época
A quarta tarefa no trabalho de leitura interpretativa das Escrituras visa a identificar o tempo ou época com o qual o texto que queremos ler está relacionado. Esta identificação do tempo nem sempre está relacionado com uma data específica de um evento, mas pode ser também um período quando aquela ação ou várias ações foram realizadas (por exemplo: o período do exílio da Babilônia). Alguns casos, a data do evento é muito importante para a interpretação do texto.
Há inúmeras maneiras criativas de situar os eventos nas Escrituras de modo a produzir um impacto maior na leitura e interpretação das Escrituras. A informação do tempo nem sempre está presente na narrativa lida, mas por meio de outros textos do cânon ou até mesmo por meio de literatura extra bíblica.
Na identificação do tempo é sempre recomendável manter uma diferença fundamental em mente: a data do evento não é a mesma data do texto. Porém, em alguns casos, a data do evento parece estar próxima a data do texto.
- Data do Evento – Período, época ou data específica quando os personagens descritos na narrativa viveram
- Data do Texto – Período, época ou data específica quando o autor e os primeiros leitores viveram e o texto relatando o evento foi redigido.
Como medir a Distância entre A-B?
Nomes pessoais, referências geográficas, nomes de cidades ou povos, referência a algum evento da história da redenção, uso de expressões “naqueles dias”, “até o dia de hoje”.
ONDE? Identificando o Local
A quinta tarefa no trabalho de leitura interpretativa das Escrituras visa a identificar o local dos eventos bem como o local onde o texto foi escrito. A identificação do local também requer uma diferenciação entre o local do evento e o local onde o texto, descrevendo o evento, foi escrito. Ainda que a identificação do local seja pouco descrito que as outras perguntas interpretativas, algumas vezes ela se torna crucial.
Da mesma forma que a identificação do tempo nem sempre está ligado a uma data específica, a identificação do local também não precisa ser uma referência a cidade ou região. \
Conclusão
As perguntas interpretativas (perguntas chaves) nos auxiliam a focar naquilo que é central para a mensagem original, antes de iniciarmos nossas investigações pessoais no texto. Mais do que isso, elas podem até prestar um grande auxílio em nosso interesse, pessoal no texto, já que elas organizam as ideias dentro de uma lógica que permite muitas aplicações.